sexta-feira, fevereiro 06, 2009

A Volta

Eu não quero escrever nada. Vem aquela trava na altura do bíceps, que desce num fluído para o antebraço e recolhe os dedos. A má vontade parece estar exatamente entre meu peito e minha garganta. Ou nas minhas sobrancelhas inclinadas, para quem pode apenas me ver e não me sentir. É de uma força tamanha que me faz parar a cada frase. Essa veio com o mesmo tempo de espera que eu teria num parágrafo. Não sei, simplesmente não quero e isso me acontece há tempos. Mas preciso voltar, preciso voltar a querer, se é que se pode obrigar. Não obrigar, mas quem sabe no tropeção de uma palavra encontrar o fio que me conduzia antes. Talvez uma expressão me alegre e me imponha a escrever, num enchurrada, como alguém sonolento que ao ser tocado num ponto exato do corpo desperta. Vou tocando em mim e contra mim até encontrar. Porque preciso. Não vejo outro caminho mais significativo para eu retornar a ser o que eu era. Quando estava mais vivo e contava histórias minhas como um grande ocorrido, e sentia uma enorme satisfação em estar entre muitos, e me sentia bem, seguro, escrevia com vocação. Era um ofício em que a vida acontecia para ir até ele. Era exagerado, uma obsessão, mas se vier novamente apenas um pouco disso, posso voltar a ter vontade de tudo. Sinto falta de muita coisa, como se estivesse enclausurado. Não amo mais ninguém e isso é o que eu defino como fim. Não pretendo estar no fim. É uma ordem continuar, claro, e isso só é possível se amo, que só é possível se me disponho para o mundo. Escrever - era o meu sentido salvo.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Os últimos meses (a literatura)

Até pouco tempo, acreditei que virar escritor me pouparia de ser alguém completo, com todos os gestos, os cumprimentos, as despedidas e as obrigações que ser alguém implica. Começou já no dia em que, ao errar algo em frente a muitos olhos e em frente a muitos olhos me constranger, decidi escapar e, no futuro, escrever livros. Repetia comigo que eles se lembrariam do episódio quinze anos depois e não sentiriam outra coisa senão afeto, porque ali era um escritor num pequeno ato falho, num breve desvio de atenção. Tudo se justificaria. Eu estaria absolvido de todos os meus enganos enquanto homem.

           A cada erro me apegava ainda mais à idéia literária, tornava o escrever uma obsessão estranha, com fins e pós-fins em sua intencionalidade. Pouco sincero, havia um público em minha cabeça para toda frase. Público composto dos que me provariam. Ignorava o que não fizesse parte do meu objetivo, incluindo certos entendimentos, certas pessoas, certos espaços.

        Uma tarde, anos após, quando errava pela terceira ou quarta vez com a mesma pessoa, ouvi um arremedo de palavras que me latejou por horas. Caminhei demais para entendê-las até o seu último tom mais denso. E, no final, não suportei mais repeti-las em mantra, obrigá-las a me remoer, deixei que se filtrassem numa única expressão, não menos penosa que as outras unidas, mas que aos poucos me lançaria ao canto em que eu queria estar: “meu caro, nada salvará você de si mesmo”.

          Eis por que, Olivian, você está descontente com sua amante, com suas vilegiaturas e consigo mesmo. A razão desses males você talvez já tenha notado; mas então por que comprazer-se neles ao invés de procurar saná-los? É que você é muito miserável, Olivian. Não é ainda um homem e já é um literato.

          Marcel Proust em “Os Prazeres e Os Dias”

          Penso que o escritor deva sentir como o seu lugar a condução de um estado latente de vida, os seus cadernos como um repouso do que vem mais alto, não como um ímã que puxe qualquer substância do ar. É preciso ir o mais além que se possa e ter o limite no objetivo, fazendo um sentido fundo nas linhas que se narra, pois de sentido em sentido se chega ao maior. Eleger a escrita como uma grande força, mas apenas uma das grandes que se poderia escolher, essas que servem de pretexto para que conduzamos os dias e vejamos o desenvolvimento de todos eles em nós. E disso surgir uma literatura que se move de verdade. É essa a literatura em que queremos meter o rosto, nós, escritores, professores, jornalistas, estudantes, donas-de-casa, andarilhos, qualquer coisa em busca.

          Observo em várias novas publicações um despropósito com a visceralidade, uma queda excessiva pelo conceitual, os personagens ocos, a ironia inconsistente, as expressões com aparência de processador Word. Leio-os e sinto a textura do papel junto com as letras impressas, o que deveria ser proibido a um leitor. O objeto precisa desintegrar-se. Mas não, permanece. E acabo a leitura com a idêntica facilidade de quem não acabaria: fecho as páginas e pronto. Mais um.

           Procuro agora nos livros a sensação de absurdo que é estar e estar aqui, de ter atravessado o intervalo entre o microcosmo inanimado e a célula, de então respirar, me alimentar, querer alguém do meu lado, ter crises e rumar invariavelmente para a morte. Não posso doar tanto tempo a escritores que escrevam como se não fossem morrer, como se a vida já tivesse se normalizado. Quero os que, mesmo sabendo do tamanho da morte que lhes virá, escrevem. Um olho no papel, um olho no penhasco, ouvindo o tic-tac da bomba crescendo. E meu olho neles, os modelos.

          Não devo enxergar na literatura uma ascensão que se desnivele, que não esteja em reta paralela com a dos meus passos. Nunca ver nela aquela promoção fácil de mim mesmo, um sustento, para que por ventura as pessoas me enalteçam sem mim. Nada de amenizações, nada de forma de consertar estragos, nada de potência para covardes. Não devo pedir que ela colha qualquer coisa que eu lhe entregue com o nome dela. Não devo nunca aporrinhá-la se não tiver segurança que contribuo e não apenas a incho. E para tanto, dure o que for de duração, é preciso me fortificar dentro do meu canto, entender vorazmente o que me cerca, perceber meus passos ficando cada vez mais firmes. Meus dedos. Meus rascunhos como o alargamento de minha ação.